‘Através da flauta toco corações. A música é um jeito não apenas de ver o mundo, mas de me mostrar para ele’, diz aluno com deficiência visual’
A melodia do piano que sai de uma das salas do Colégio Estadual Professor Clóvis Monteiro, em Higienópolis, encontra-se com os acordes de guitarra que vêm de um cômodo vizinho. No corredor em frente, adolescentes repassam as lições da aula de flauta, enquanto um professor carrega os instrumentos de percussão. É nessa mistura de sons que o Rio de Música chegou aos dez anos, em uma das regiões mais conflagradas do Rio de Janeiro.
Desde a criação do projeto até hoje, os tons dos instrumentos precisaram vencer o barulho dos tiros. Da primeira sede, na viela conhecida como Garganta do Diabo, no Jacarezinho, sobrou apenas o desejo de ver a escola seguindo seu curso, como um rio de esperança na comunidade que tem um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado.
Hoje o Rio de Música oferece aulas gratuitas de sete instrumentos a crianças, jovens, adultos e idosos: baixo, violão, piano, percussão, bateria, flauta e canto. Todos os professores acompanham grandes artistas como Maria Bethânia, Hermeto Pascoal, Edu Lobo e Egberto Gismonti.
– A ideia surgiu quando visitei o Jacarezinho, a convite do Antônio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz. Havia muitos problemas, crianças e jovens nas ruas sem ter o que fazer. Mas percebemos também possibilidades incríveis, uma força cultural muito potente – lembra Bruno Aguilar, fundador e professor de baixo do projeto, orgulhoso ao contar que a escola já impactou diretamente 500 pessoas: – Nosso objetivo nunca foi somente formar músicos, mas sim mostrar que a música é um instrumento de transformação, forma de despertar uma sensibilidade diferente para ver o mundo.
Para Aline Gonçalves, professora de flauta, a atividade musical tem de fato esse poder:
– É claro que se pode fazer música sozinho, mas em grupo a fluidez é incrível porque todo esse processo envolve olhares, gestos… Quando se entende que o jogo é jogado junto, a música acaba sendo um momento de agregar.
Fábio Santos, aluno do Rio de Música, foi acometido por uma neurotoxoplasmose há seis meses. Ficaram a cegueira total do olho esquerdo, apenas 10% de visão no olho direito, limitações na coordenação motora e uma vontade imensa de seguir na música, já que era percussionista e os movimentos passaram a ser um desafio. Foi pela flauta que Fábio descobriu, há dois meses, uma nova forma de ver o mundo: através da audição.
– Tenho restrições também nos dedos, mas não me impedem de tocar flauta. As aulas são uma forma de superação, permitem que eu não perca minha musicalidade. Através da flauta toco corações. A música é um jeito não apenas de ver o mundo, mas de me mostrar para ele. O instrumento fala por nós, qualquer instrumento bem tocado tem o poder de passar uma mensagem – afirma o morador de Manguinhos.